segunda-feira, 31 de março de 2008

Shout

Eu grito porque o silêncio me incomoda.
Eu grito pra acordar a vizinhança. Eu grito pra fazer a velha gorda que caminha na calçada olhar pra cima. Eu grito pra deixar a meninada com medo de sair na rua, eu grito pra deixar o velho guarda com pânico do obscuro, eu grito pra deixar o carinha que amassa na esquina a namorada, de cabelo espichadinho, com o pau endurecido.
Eu grito porque não tenho voz. Eu grito porque eu calo para quem merecia uma porrada. Eu grito pela morte do meu gato, eu grito pela sorte do vagabundo que achou no lixo uma coxinha pela metade, eu grito pelo medo que o porrete causa na pele fria do mercedes prateado, eu grito pra abafar o barulho do avião, eu grito pra jogar qualquer muro em algum chão, eu grito pra enganar a desconfiança, eu grito pra apressar qualquer mudança.
Eu grito porque eu grito. Eu grito porque não aprendi a não gritar. Eu grito de tesão. Eu grito de alegria. Eu grito de pavor. Eu grito de horror. Eu grito por amor. Eu grito de saudade. Eu grito de felicidade. Eu grito com a boca cheia de lágrimas. Eu grito com a boca seca de vontade. Eu grito com a mão espalmada pra ampliar o grito. Eu grito com a camisa aberta no peito pra enfurecer o grito. Eu grito com o olho esbugalhado pra causar atrito. Eu grito porque, se eu não grito, eu não existo. Eu grito porque gosto. Eu grito porque quero. Eu grito porque sonho. Eu grito porque desisto. Eu grito porque insisto. Eu grito porque ninguém me ouve. Eu grito porque ninguém me vê. Eu grito porque quero continuar no escuro. Eu grito de vergonha. Eu grito por exibicionismo. Eu grito por hipocrisia. E eu grito por detestar a hipocrisia. Eu grito por idolatria. Eu grito por necessidade. Eu grito por inconsequência. Eu grito de orgulho. Eu grito por arrogância. Eu grito só de implicância. Eu grito porque gritando eu não vomito.
Eu grito porque o silêncio me machuca. Porque a noite me aprisiona. Porque o sol me dói a vista. Porque a sorte me abandona. Porque a morte me ronda o quarto. Porque a vida não se mede com uma régua. Porque não encontro a porta aberta. Porque não suporto nenhuma perda. Porque não acredito na vida eterna. Porque quero me aconchegar no peito dela. Porque quero amarrar poesia nas estrelas. Porque quero avacalhar as letras do alfabeto. Porque quero enterrar as mentes obtusas. Porque quero destruir as meias-verdades. Porque quero esburacar o sonho alheio. Porque quero estraçalhar quem me machuca.
Eu grito, porque eu grito. Eu grito porque o silêncio me incomoda. Eu grito pra fazer barulho. Eu grito.
Me beija. Que eu calo.

sábado, 22 de março de 2008

do amor gritou-se.








[o escândalo]

quinta-feira, 13 de março de 2008

4 partes de 1 mesmo nada

A Queda

"Mulher - Divino Luxo [...]/A dor ninguém suspeita imperial"
Tom Zé - Mulher Navio Negreiro


Começou assim. Um banco, um silêncio, um afago, um beijo, mil pedaços. Era o que tinha de ser naquele momento, dois a rodar, um pulo e um pouco de tédio, a morte engarrafada, deliciosa golada de perigo e dissabor.

Foi naquele momento, até o beijo da pedra, a partida, a caminhada, o melaço, a carona, a despedida, foi naquele momento da janela calma, da olhadela e do beijo engolido, ali, no abraço do inimigo, assim caminhava o destino para o imprevisível. Deus deve ter se remoído todo ao contemplar mais choro, menos racionalidade e mais tesão pelo perigo eminente de ser reduzido a nada. Nada. Na-da.

Caminhou, ouviu os passos, voltou os olhos junto com a cabeça, depois o tronco inteiro, deu um passo à frente, esperou. Tap-tap-tap-tap-tap, a corrida foi rápida, sentou, puxou-o para perto, disse qualquer coisa, apareceu alguém, alguém apareceu e o levou para longe. Levantou, andou, carona, casa, sono.

O Coice

"You launched the assault with the first cannonball/
my soldiers were sleeping"
Sean Lennon - Friendly Fire


O dia começou dolorido, rasgando desejos e escondendo a cara do sol. Era assim agora, acordava com o estômago embrulhado, pensava nos beijos, nos secos puxões, nos encontros dos dentes, o momento eternizado na fotografia, as bocas suspensas, no exato momento em que as línguas roçavam os lábios, prontas para o duelo. Era assim agora, não tinha certeza de nada, apenas seguia.

Acordou, vestiu uma camiseta, abriu a janela, calçou o chinelo, primeiro o pé direito, desemborcou o par esquerdo, só então o calçou, abriu a porta do quarto, deu de cara com a mãe que cozinhava, a cozinha toda cheirava a pecado e a porco assado. Bom dia mãe alguém me ligou, Um copo de leite, meu filho, a mãe retornava e dava os recados, acariciava a mão dele, ele era o filho preferido dela, era o único filho vivo, era o único filho adoravelmente vivo. Nos olhos e no quadril, nos bíceps e no cabelo. Ligou um rapaz para você, meu filho.

Discou, do outro lado o barulho do fone sendo suspenso, a voz suave, Alô, sim, sou eu, como você está?, Vem pra cá, aqui a gente conversa melhor.

O Castigo

"And if the lights are all out I'll follow your bus downtown/
See who's hanging out"
Blondie - One Way or Another


Passou então a desejar a repetição de cada coisa que acontecera na noite passada, sentir a vida pulsando nos ouvidos, as mãos dele passando no seu tórax mirrado e liso, o desejo das palavras certas, um "eu já te achava interessante", a revelação de que o mundo é mesmo assim como diziam, não se pode mandar no peito e no púbis, não há guarda-chuva contra o amor.

Mãe, tenho que resolver uma coisa, bateu a porta de casa, era tarde da manhã, quase meio dia, era tarde, era quase noite, o céu era púrpura, violeta, rosa e todos os tons que abraçam os meios dessas três cores, um passo firme, o beijo da pedra, da mão, o soco da chuva, o tempo todo passando as mãos no tórax dele, mirrado, liso e delicioso, era como se fosse o prêmio final das revelações daquele novo mundo. Ninguém nunca havia dito que era assim que as coisas aconteciam, mas era assim que as coisas aconteciam, rapaz.

E então era daquele jeito diferente. Uma indiferença, um calor nos lábios, um beijo, um trevo, só dá sorte se você ganhar de alguém, um passeio, um sorvete, os sabores de fruta, limão para o peito, manga para a língua, uva para os olhos, tomado de sabores e noites escondidas na sala, ele se deixando descobrir e penetrar, aos poucos, há delícias que só se descobre se há coragem para seguir. Sê mais gentil, quero te dar um presente, você não se importa em estar aqui, não é? É assim que você pensa?

A Redenção

"Você é o cheiro bom da madeira do meu violão[...]
Você é a canção que consigo escrever afinal"
Caetano Veloso - Pé do meu Samba


Passados tantos anos, ainda pensava naquelas noites, nas cervejas e delícias, pensava em tudo e ainda via as marcas das unhas dele no seu peito bruto e amargo, os pêlos da barriga pediam a mão dele, prendia a respiração um segundo sempre que o via, mas isso nunca admitiria. Levaria para sempre dentro de si o recado final, a ilusão primeira, a verdade derradeira: "eu nunca pensei que isso fosse acontecer".

sexta-feira, 7 de março de 2008

Mas isso acaba aqui









segunda-feira, 3 de março de 2008

Easy wrighter

Bilhete 1 – (Local: Rua Amaro Leite, em frente ao número 421 - Zona Norte)
Eu quero que você se foda! Eu quero que você se foda, se arrebente, se mate, se estrepe! Eu quero que você se foda, porque você é nada. Você é nada, uma merda de nada! Você não presta, você não sabe o que é amor. Você nunca teve amor. Ninguém nunca te deu. Você não sabe o que é viver, você não tem pai nem mãe, não tem casa, não tem jeito, não tem sonho, não tem amigos, não tem porra nenhuma e fica afundando esse nariz no pó pra fingir que é legal, que é da moda, que tá de boa! Eu quero que você se foda! Se foda! Se foda, entendeu? Se foda!

Bilhete 2 – (Local: Rua Bento Nobre, em frente ao número 1.298 – Zona Norte)
Me avisaram. Me avisaram sobre quem você é. Me avisaram que você não respeita ninguém, que você não ama ninguém, que você não deseja ninguém, só a você. Eu já sabia da sua história e de suas merdas de estórias. Eu sabia das suas putarias, das suas sacanagens. Entrei sabendo. Mas, caralho, você não podia uma vez na vida ser alguma coisa melhor que essa merda de pessoa que você é? Agora eu fico aqui, escrevendo pra você e jogando essas merdas pela janela do carro no meio da noite. Merda. Merda. Merda!

Bilhete 3 –
(Local: Avenida Independência, em frente ao numero 3.879 – Zona Leste)
Eu sei que você não vai ler essas merdas que eu tô escrevendo. São 3 e meia dessa porra de madrugada e eu aqui, escrevendo essas porras de bilhetes que você nunca vai ler. Eu sou mesmo idiota. Idiota! Uma merda de pessoa idiota que se meteu a amar você. Porque eu queria amar você, amar seu cheiro, amar esse sorriso escroto que você tem, puta que pariu que sorriso lindo que você tem que me desmancha e me faz esquecer que você não presta, que você é nada. Quem é nada sou eu. Eu sou nada e sou ainda mais nada sem você. Sem você, sem a merda do seu sorriso escroto. Eu sou nada sem você. Nada.

Bilhete 4 –
(Local: Rua Amália Meneses, em frente ao número 211 – Zona Leste)
Eu morri. Hoje eu morri. Eu morri quando vi você cantando. Morri quando vi você sorrindo. Morri cinco, dez, mil vezes, porque toda vez que você piscava e eu via seus olhos piscando, toda vez que você respirava e eu via seu peito subindo e descendo, toda vez que você abria a boca e eu sentia o cheiro da sua boca, toda vez que eu via que você ainda existe e está feliz eu morria outra vez. Estava a dez metros de você e sentia o seu cheiro de chiclete de canela na sua boca, e sentia o seu cheiro de chiclete de canela na minha boca, e sentia o seu cheiro de chiclete de canela em toda parte de mim. Eu morri. Morri mil vezes. Mil vezes. Morri.

Bilhete 5 – (Local: Rua General Coriolano Bezerra, em frente ao número 474 – Zona Leste)
São 4 e 19. E eu pensando em você. E eu pensando em nós. E eu pensando no que a gente sonhou. E eu pensando no jeito que você tem de arrumar o cabelo depois do banho. Puta que pariu, como é que alguém pode sair do banho e passar a mão nos cabelos como você faz? Como é? Como é que alguém pode sentir o tesão que eu sinto quando vejo você passar a mão no cabelo depois do banho?

Bilhete 6 – (Local: Avenida Expedito Alves de Oliveira, em frente ao número 806 – Zona Leste)
Você me dá nojo. Você me enoja. Tô vomitando a alma aqui, pensando em você. Pensando em quantas vezes você me beijou depois de beijar alguém no meio do caminho. Pensando em quantas vezes você me abraçou, me sorriu, me colocou no colo depois de ter fodido com alguém. Você me dá nojo. Eu te odeio. Eu te odeio como nunca odiei você. Eu te odeio porque sem você eu não sou porra nenhuma. Eu te odeio porque sem você eu sou menos da metade de mim. Eu te odeio porque amo você. Cacete, como eu amo você!

Bilhete 7 – (Local: Rua Bonésio Leiva, em frente ao número 14 – Zona Sul)
Vou pra casa. Cansei de rodar, rodar, rodar. Cansei de você e de escrever essas merdas pra você. Você nunca vai ler, mesmo. Você nunca nada.Vou pra casa e vou trancar a porta e deixar você para sempre do lado de fora. Vou ficar liv

***

- M., preciso te dizer uma coisa.
- A essa hora da manhã?
- M., aconteceu uma coisa. Senta e escuta.