segunda-feira, 13 de outubro de 2008

The Forgotten Boys Street

Bati palmas no portão da casa, vi uma senhora levantando lá dentro, coçando o ombro e fazendo cara de quem não queria ter levantado por nada nesse mundo, “oquêqueémeufilho?”, ela cuspiu e quando eu disse que queria ver Loana, que tinha esse nome por culpa do escrivão do cartório da rua dos Absurdos, a velha então cuspiu no chão e gritou forte para dentro de casa: “LOAAAAAAANA” e a menina veio enfeitada de raio de sol com um laço verde no cabelo, cheirando a baunilha. Ela passou e disse que ia brincar na pracinha em frente de casa. “Arrumada desse jeito?”, cuspiu de novo e Loana então disse: “Sim, Marilda, só brincar com o Etevaldo, meu amigo”.

Não gosto desse rapaz, desse menino, não gosto que me chamem no meio da minha novela, eu já trabalho a semana inteira e ainda tenho que ficar atendendo a porta pra essa molecada ficar fazendo barulho na frente da minha casa, atrapalhando a minha novela? Essa menina vai se perder, essa Loana, nunca vi essa história de menina ter amigo homem, de brincarem juntos, de rirem tanto, as caras que essa menina faz quando tá perto desse Etevaldo, esse chamar de amigo, essa fita no cabelo... Eu não sei, acho que essa menina vai acabar se perdendo, o Francisco não acha e ele não precisa saber que eu só respeito a vontade dele por que é ele que paga minhas contas e me deixa ficar em casa cuidando das minhas coisas, ruim era no tempo em que eu tinha de acordar pra ir para o trabalho, mas agora eu herdei essa menina, com esse nome estranho, agora que o Francisco me quer só pra ficar em casa eu não vou reclamar. A filha não é minha, o problema no fim das contas é dele.

Eu quase nunca tenho um motivo bom para sorrir que não seja quando o Etevaldo aparece na porta de casa, de banho tomado e cara lavada, e boca cheirando a pasta de dente, me chamando pra brincar na pracinha em frente de casa. Essa mulher não é minha mãe, a minha mãe morreu e me deixou um apelido secreto, só meu e dela e uma fita verde de por no cabelo. “Pros dias especiais, minha filha”, então quando o Etevaldo vem eu ponho a fita e eu vejo pelo olho dele que ele acha bonito. Essa mulher ai sente inveja da minha mãe, eu sei, por isso que ela é tão zangada comigo. Mas meu pai esqueceu minha mãe e gosta dela e eu sou só uma criança, então eu não posso fazer nada a não ser chorar à noite ou sorrir bastante quando o Etevaldo aparece aqui. Acho que da próxima vez que eu precisar ir na padaria comprar o pão do café da tarde eu vou dar um jeito de pegar umas moedas pra mim então eu vou apostar com o Etevaldo uma corrida boba e perder e ai dar as moedas pra ele e sugerir como quem não quer nada pra gente ir tomar um sorvete. Ai eu sei que ele vai me pagar esse sorvete e eu venço essa besteira dele de achar que eu não posso pagar nada, nem um bombom nem uma maria-mole ou um quindim. Nessa vida a gente tem que ser esperta, senão vem uma velha dessas e nem deixa a gente tomar sorvete.

Quando a minha mulher morreu eu não soube muito bem o que fazer, a Loana tinha pouco mais que quatro anos e esses quatro anos seguintes foram bem difíceis, mas no fim das contas eu consegui arrumar uma mulher boa para ficar em casa e que gostasse de mim e fizesse bem para a Loanda. Ah!, como a Marilda gosta dessa menina, eu vejo no jeito dela que ali tem um carinho bom. Eu tenho muita sorte de poder contar com essas duas meninas na minha vida, por que a Marilda pode ter sua idade, mas é uma menina, um anjo, uma coisa linda. O Etevaldo... o Etevaldo é uma outra história...

Do lado de fora da casa, enquanto a criança brinca e a menina do olho dança e o sol se põe devagar, Marilda observa o jardim e conta os botões de rosa dando um tempo pra novela voltar do comercial. Aponta longe o carro de Francisco, subindo a rua, e Loana pensa “meu pai vai gostar de me ver com a fita verde que minha mãe me deu” e pede para Etevaldo esperar um pouco. O pai, Francisco, breca o carro, bate a porta e a filha chega e o abraça “oi, pai”, o pai retribui o abraço, diz que está cansado e que quer entrar logo, a chama para o jantar, Marilda já está na sala e beija o marido, Etevaldo está longe e esquecido, mais uma vez imagina, o portão já vai fechando e Loana, no último segundo libera o menino para respirar de novo, “Amanhã eu quero apostar uma coisa contigo”, ele ri, sabe que vai ganhar e desce a rua feliz, pensando na fita verde, em Marilda e no carro novo do seu Francisco. Etevaldo sabe que ama Loana e espera logo logo poder fugir com ela. “Toda vez que ela usa aquela fita verde ela fica tão linda”.

Chuta mais uma pedra e o lusco-fusco fica mais intenso. Um vento forte traz o cheiro de baunilha de Loana de volta para o nariz dele e ele ri.

9 comentários:

oseguinte disse...

texto maaanso..
e gostoso.


;*

Prill disse...

olá, pedro.
bem bonito isso, bem cálido. talvez inda fique um tempo pra maturar porque é texto onde há mais buraco e ele fica mais embaixo. maturar é uma coisa pra gente pensar se vai, se fica porque nem sempre é bom, nada garante que seja bom.
gostei demais das fotografias que vocês tem aqui, já guardei as coisas pra voltar sem errar o caminho.

pensando... que preciso escrever coisas mais com mais alegrias assim. me deu uma saudade fodida dum monte de coisa. obrigada e até

Anônimo disse...

confesso que ainda não tinha parado pra ler o "dois dedos"...

sobre o texto... vaitchaporratextolindo!

encanta-dor.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabrielle disse...

Putaquepariu! Que texto lindoo!
Adorei!

;*

Dani Jales disse...

podia escrever com mais frequencia..

Rosa Magalhães disse...

Texto gostoso de ler, Pedro!! Eu tenho uma amiga que cheira a baunilha... de verdade! Beijo procê.

Unknown disse...

Delícia encontrar filigranas de tu'alma esparramadas por aqui. bichim! Amutu!

Neta. Evenice Neta disse...

Nem lembro mais como chegeui ao "dois dedos".
Isso mui pouco importa agora.
Importa é que deparei-me com esse texto que é uma lindeza só.
Fiquei cá a perguntar-me se o autor teria alguma ideia das memórias despertadas a partir dessas palavras, dessa história.
Chegou-me assim sobressaltado um cheiro de infância, de borboletas no estômago, de sonhos e amores possíveis.
Mas o espanto dissipou-se numa nuvem singela. Tipo aquelas que apontamos alegremente quando criança. "Repara:um chapéu, um golfinho. Espia ali: um pirulito". Agradecida demais por ter encontrado esse texto. Mas, afinal, "o que é um acaso na vida?"